Fios de Penumbra

Notas soltas de metrópole

É no regaço da noite que em cama de musgo me deito. À hora em que os pinheiros se despem. À hora em que os lagos transbordam. À hora em que o gelo hiberna sob o tapete do céu. À hora em que a chuva absorve a lenta integridade da Terra, em círculos clandestinamente perfeitos.

Mas onde me encontro ainda não é noite.

A montanha a Norte carrega em si o cume do verde esplendor que, escurecido pela devastação da solidão, emoldura cada sombreado desta cidade abandonada. A aragem, ao de leve, agita a lentidão das folhas que se desprendem e a pouca água que as imprime.

Pálpebras preguiçosas, súbditas de um contemplativo Quarto Minguante, adormecem de rajada numa viagem sonora, embriagada por mais um dia que passou.

Não almejo assistir à colisão das pupilas, a inevitável fusão dos depósitos capaz de dilatar o frio que me escorre pela alma. Prefiro o abraço taciturno do silêncio, de uma tinta cuja permanência já a pele conhece por habituação. Mas assisto, como rascunho de gente junto do vidro da janela.

Vejo o mundo frenético, por inteiro, encarcerado no seu próprio desencanto. E adivinho o ouro que a manhã carrega em si no peito como quem mede o horizonte só com o lado absoluto do olhar.

E porquê? Porque quero que assim seja. E porque mais ninguém o faz. O desalento toma-me e mergulha-me num silêncio fugaz cristalizado, outrora prolongado, fazendo descer as suas mãos gélidas e repousando-as sobre a agonia da alma em chamas, enquanto os meus olhos testemunham a lenta germinação dos dias.

A madrugada é agora escrita com caule e raiz, como se sentisse o lado brando da Terra a estremecer.

Oiço a cadência dos passos nas calçadas calcorreadas por habitantes dementes e vagos viajantes, por entre as confidências das paredes lascadas pelos uivos das sombras, acasos, evasões momentâneas, com a promessa cravada de um regresso rotineiro sem demora.

Sussurram-me que a magia dos fios de penumbra não se esconde na debilidade das nuvens nem na outra faceta das estrelas. Pressinto o perpétuo voo de fuga e volta, ou aquilo a que geralmente chamam de escape cego e bipolar.

Sim, pressinto, enquanto interrogo constantemente cada palavra e o mundo porque ambos me assediam na medida exacta com a sua urgência atroz. Vou procurar a salubridade de um riacho salgado para pernoitar enquanto a Lua se banha no lodo abandonado pela melancolia.

Poderei eu ver, pelas pálpebras da água, o que atento ser real ou não real, num enlace púrpura até poder encontrar a moldura certa capaz de encerrar a ausência da pintura que sempre me recusei a pintar. E o que isso poderia, eventualmente, significar, quando embebida em vermelhos de revolta e azuis de saudade.

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