Sempre foi céu
Penso que o amor se instalava sempre da mesma forma, num descompasso que fazia do coração um verdadeiro aprendiz da desordem.
O estrangeiro, cujo território se fazia e refazia nas palavras que preferimos manter preservadas à distância, atravessava-nos a pele, perfurava-nos os dedos que acabariam por se tocar por acidente, movimentando-se com mímicas de nostalgia antecipada, como se o tempo ao invés de correr junto do mar, tocando a superfície das rochas com uma suavidade que só ele conhecia, se dobrasse sobre si mesmo até os músculos não aguentarem mais.
Esse amor escorre-me hoje pelos olhos enquanto todos dormem no decurso das horas mais quietas.
Pesa-me. Pesa-me tanto, por vezes.
Esconde-se por detrás da densidade geométrica das nuvens vincadas sobre os campos nos dias em que decide viver para além da sua finitude, rejeitando a ferrugem dos dias, refutando a corrosão provocada pela ausência.
Porém, o amor não se vai. É como a sombra detalhadamente amorfa de uma árvore que, ainda que distante, persiste numa integração não-forçada na paisagem. Molda-nos, calmamente. Não como a pedra que o escultor talha mas sim como o vento que tão facilmente desenha as dunas na praia mais exposta à nortada. É nessas horas que se torna fácil acreditar que o amor é gerado por uma linha ténue que não quebra, pela brisa que atravessa o corpo da cabeça aos pés.
Não nos morre, porque nunca foi de carne. Ao atravessar múltiplas vidas sempre foi água, sempre foi mar, sempre foi céu.
E talvez seja isso: continuar a viver o amor é consentir ser esculpido por algo maior, por essa força que nos desnorteia e, ao mesmo tempo, nos revela. Como se, ao amar, nos víssemos, por fim, no reflexo daquilo que sempre fomos, mas nunca soubemos definir.