Observatórios de Estrelas

O vento chega-nos de Sul e traz consigo o cheiro das algas descartadas pela maré que se enredam em memórias, agora desmembradas, como uma manta de lã podre estendida pelos dedos mais hábeis sobre o areal. No rescaldo de Agosto, as noites ainda retêm parte do fervor do dia e continuam quentes, como se o mundo se mantivesse suspenso, num equilíbrio precário entre o calor e o frio que não chega a se instalar.

Oiço, por perto, o canto das minhas gaivotas. Atravessa a distância entre os dias, dançando na margem do crepúsculo, quando a luz hesita em partir. Ali, entre o fim e o começo, encontram o lugar exacto onde a memória faz por adormecer.

Nos últimos meses tenho procurado subir vezes demais a colinas desertas, procurando respostas nas constelações, como quem espera que as frequências certas sejam capazes de me sussurrar numa qualquer língua enigmática perdida na sombra do que alguma vez já fomos. Através de frestas sinistras que se abrem para o céu, agora não me é dado nada mais do que um grito da solidão mais agonizante que alguma vez poderia sentir.

O grito.

(As noites continuam quentes…)

Por isso, deixei de acreditar em observatórios de estrelas. Aqueles que outrora me prometiam mapas desenhados a partir da geometria do céu, como se os astros fossem fiéis às linhas que os homens procuram desenhar, são agora lugares preenchidos pela ausência do som das tuas palavras. As estrelas transformaram-se em ilhas reclusas, flutuantes e não passam de promessas vãs quebradas de luz. As que gostava de observar de terra firme nos minutos mais serenos da madrugada. Recentemente percebi que me traíram.

As estrelas, os telescópios e os homens que fingem compreender a linguagem do cosmos. Todos eles falharam estupidamente.

E talvez eu também me tenha traído a mim mesma, ao esperar que aquela luz me salvasse da escuridão onde, afinal, é preciso aprender a ver. Saber ser luz na escuridão.

É assim que nos perdemos totalmente, na profunda certeza de que até o nosso mais seguro refúgio nos pode destruir. A nossa própria casa. E quando a noite respira o seu cansaço sobre nós, resta-nos apenas o silêncio de quem já não sabe para onde olhar.

Nem para cima.

Sabes, em tempos não entendia que o coração possui maneiras próprias de falar e que a saudade também é uma linguagem. Os sinais sempre estiveram aqui, dentro do peito, na quietude das coisas que não precisam ser ditas, apenas sentidas.

Hoje procuro-te em borboletas brancas que pairam como quem esquece o chão, como quem não pertence ao peso da terra. O anoitecer observa-as, ao longe, antecipando a sua dissolução no escuro. Porém, antes que isso aconteça, elas insistem em mais uma dança ao redor do meu corpo.

Uma última dança.

São como pensamentos que não morrem, frágeis, mas eternos. Talvez seja esse o mistério: o voo não se limita à ida, mas também ao regresso.

Tenho regressado. Tantas vezes…

Ainda sinto vestígios dos teus lábios calcinados na pele. Como a saudade, que persiste muito depois do adeus, sem rosto, sem forma, mas viva em cada pedaço de silêncio que o anoitecer carrega. E, à medida que os ponteiros dos teus relógios vão girando, vou-me aproximando cada vez mais de ti. Porque a distância não mede aquilo que se vive no coração, é apenas um artifício do corpo, uma ilusão do espaço.

Faltas-me.

A norte. A sul. A este. A oeste.

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