A companhia da ansiedade
Vivo com transtorno de ansiedade há, precisamente, 10 anos. Criou raízes num autêntico sopro e continua de pé, por entre galhos e sombras.
Eventos que sejam, de certa forma, traumáticos a um determinado nível têm um impacto duradouro na nossa saúde mental. Isto é, a longo prazo. Não há outra forma de dizer isto. Enquanto alguns conseguem recuperar pouco tempo depois do impacto, outros passam por desenvolver problemas mais sérios que podem persistir durante muitos anos.
Uma das grandes consequências de um evento desta natureza é o surgimento do transtorno de ansiedade ou um agravamento da própria ansiedade. A chamada “ansiedade normal”, que tem a sua génese no medo e que desempenha um importante papel na sobrevivência.
O corpo e a resposta ao trauma
É frequente o nosso corpo entrar num estado de alerta máximo, de hipervigilância, durante um evento traumático, o que activa o sistema de resposta ao cenário de perigo. No entanto, se não conseguimos sair desse estado de “congelamento" (freeze), toda a energia gerada pela resposta ao perigo fica, invariavelmente, presa no nosso organismo. Aparentemente, podemos parecer normais e não afectados pelo trauma mas o corpo mantém-se num estado de activação da ameaça. Assim, quando somos expostos a um gatilho, seja ele um som, um cheiro, um lugar, uma sensação que nos recorda o momento vivido anteriormente, o nosso sistema nervoso acaba por reagir como se estivéssemos a reviver o evento. É como juntar as peças do puzzle.
Foi há dez anos que tive o meu primeiro contacto com a ansiedade. Até à data, sempre fui uma pessoa calma, dona um temperamento muito particular mas, geralmente, tranquilo, gravitando entre opiniões muito vincadas, dificuldade em fazer cedências num fluxo muito profundo de emoções. Tive o meu primeiro ataque de pânico a 24 de Agosto de 2015, numa altura de múltiplas experiências devastadoras, súbitas e em sequência, sem que me tivesse sido possível intervir ou alterar o curso das situações.
A partir desse momento, passei a conviver diariamente com a ansiedade, num estado constante de hipervigilância, prestando atenção excessiva a quaisquer gatilhos que pudessem desencadear um ataque. Estes manifestam-se sempre da mesma forma: a fraqueza nas pernas, dormência dos membros inferiores, tremores pelo corpo, (pernas, braços e mãos), sensação de despersonalização, dificuldade em respirar, tosse persistente, dificuldade de locomoção e a sensação de queda iminente. Até cair mesmo.
Desde então, tornou-se habitual viver com um transtorno de ansiedade crónica. Tornou-se também natural estudar, aprender e desenvolver novas técnicas que me ajudem a gerir esta condição de uma forma mais saudável.
Assinalou-se agora um ano desde que tive o meu último ataque de pânico, numa tarde de Janeiro de 2024, quando, mais uma vez, me tiraram o chão da pior forma possível. No entanto, estas crises surgem sem aviso prévio e nunca sabemos quando nos voltarão a bater à porta. Por vezes são desencadeadas como resposta do próprio corpo a cenários de perigo, por outras somos capazes de sentir em tempo real algo de catastrófico que, efectivamente, aconteceu, mesmo à distância.
Viver constantemente neste estado de alerta tem sido extremamente desgastante. É doloroso, limitador. O nosso corpo foi concebido para lidar com ameaças temporárias, libertando substâncias químicas como cortisol, adrenalina e epinefrina. No entanto, quando esses químicos são libertados de uma forma mais prolongada, acabam por afectar a nossa saúde física e mental, o que resulta num cansaço extremo, insónias, dificuldades de concentração e problemas emocionais. Não, não é fácil.
Os flashbacks e os pensamentos intrusivos
Surgem, então, os chamados flashbacks e os pensamentos intrusivos. Isto acontece porque o cérebro processa as memórias traumáticas de uma forma diferente das memórias normais. As informações sensoriais associadas ao trauma, como cheiros, imagens, sons, sabores e texturas, são armazenadas como algo ameaçador e que não é bom para nós. Assim, sempre que encontramos um estímulo semelhante ao que vivemos, o cérebro reage automaticamente, trazendo de volta as memórias e a sensação de perigo.
Embora estas experiências possam ser extremamente assustadoras, é importante lembrarmo-nos de que estas não são um sinal loucura. Trata-se, apenas, da forma como o cérebro funciona para nos tentar proteger de futuras ameaças. Mas nem todas as pessoas sentem o mesmo durante ou depois de um trauma. Somos todos diferentes. Além disso, as nossas emoções poderão mudar ao longo do tempo, serão moldadas por meses ou anos após o evento. É importante nunca nos esquecermos de que todos estes sentimentos são válidos, passe o tempo que passar, mesmo que não tenhamos a certeza do porquê de nos sentirmos de determinada forma.
Sentimentos de culpa e vergonha
Quando passamos por uma situação traumática a dada altura da nossa vida, podemos sentir que a culpa é nossa. Como consequência surgem sentimentos muito intensos de vergonha ou de culpa, mesmo quando não tivemos qualquer responsabilidade pelo que aconteceu.
Afinal, porque é que sentimos culpa se, efectivamente, não tivemos mão nenhuma no que sucedeu? Porque o cérebro se esforça por dar sentido ao que aconteceu e evitar sentimentos avassaladores de raiva, tristeza ou de impotência. Tentamos, desesperadamente, encontrar uma razão para o que aconteceu. Voltamos atrás, propositadamente, para verificarmos se poderíamos ter feito as coisas de outra forma, mesmo que não tivéssemos que o fazer ou como fazê-lo. Vemo-nos levados a sentir o peso das responsabilidade pelas acções de outras pessoas, mesmo quando essas pessoas tomavam as suas próprias decisões. Não temos de nos sentir responsáveis. Estes sentimentos são muito comuns, mas nem sempre reflectem a verdade sobre a situação.
Marcas que ficam para sempre
A ansiedade crónica, como disse anteriormente, é uma realidade diária para muitas pessoas que passaram por experiências traumáticas. O trauma deixa marcas profundas na mente e no corpo, levando a uma sensação constante de alerta e medo, mesmo quando não existe uma ameaça real. Esta ansiedade persistente pode interferir com o dia a dia, tornando tarefas simples num verdadeiro desafio.
Quando passamos a conviver diariamente com ansiedade crónica após um trauma, o nosso corpo permanece num estado de hipervigilância. Isto significa que o sistema nervoso continua a actuar como se estivéssemos sempre numa situação de perigo, libertando hormonas de stress como o cortisol e a adrenalina.
Esta resposta prolongada pode levar a sintomas como:
Palpitações e batimentos cardíacos acelerados;
Respiração ofegante ou sensação de falta de ar;
Tremores e suores frios;
Tonturas ou sensação de desmaio iminente;
Tensão muscular e dores no corpo;
Problemas gastrointestinais, como náuseas ou dores de estômago.
São sintomas podem surgir a qualquer momento, especialmente em situações que de alguma forma recordam o trauma vivido.
Já os ataques de pânico são uma manifestação extrema da ansiedade e podem ser, verdadeiramente, assustadores. Durante um ataque de pânico podemos sentir que estamos a perder o controlo, que estamos a ter um ataque cardíaco ou que vamos cair a qualquer momento. Apesar de não serem perigosos, os ataques de pânico são extremamente desgastantes e podem desenvolver outro medo em paralelo: o medo de que voltem a acontecer, a qualquer hora e em qualquer lugar, o que gera um ciclo vicioso de ansiedade. O chamado efeito bola de neve.
As crises de ansiedade, embora menos intensas que um ataque de pânico, podem durar mais tempo e provocar sintomas como inquietação constante, dificuldade em relaxar e pensamentos catastróficos. Algumas pessoas desenvolvem um medo persistente de estar em certos locais ou situações que associam ao trauma, o que pode levar ao isolamento social.
Não há soluções perfeitas mas há métodos que se têm revelado muito eficazes
O primeiro passo passa por reconhecer as emoções. O estado emocional pode ser intenso e instável. É normal sentirmos irritação, tristeza ou mudanças súbitas de humor. É de extrema importância termos uma rede de apoio, pessoas de confiança ao redor: passarmos mais tempo com familiares e amigos em quem sintamos confiança. Conversar sobre o que sentimos ajuda a aliviar a carga emocional, por si só já tão pesada.
Devemos priorizar hábitos saudáveis, como dormir o suficiente, ter uma alimentação equilibrada e manter uma rotina estruturada. Manter uma rotina regular ajuda o corpo e a mente a recuperarem do stress. Controlar a exposição aos estímulos é outro ponto crucial aqui: o excesso de informação que deixamos entrar pode aumentar ainda mais a ansiedade.
Lidar com este processo delicado através de técnicas de relaxamento e de meditação pode trazer um grande alívio e promover um maior bem-estar. A respiração consciente é um dos métodos mais eficazes, ajudando a acalmar o sistema nervoso. Praticar a respiração diafragmática, inspirando profundamente pelo nariz e expirando lentamente pela boca, pode reduzir a tensão quase de imediato. A meditação, por seu turno, permite-nos treinar a mente para estarmos no presente, diminuindo os pensamentos acelerados e intrusivos.
Técnicas de relaxamento muscular progressivo também são úteis, uma vez que nos ajudam a libertar a tensão acumulada no corpo ao contrair e relaxar diferentes grupos musculares. Além disso, visualizações/meditações guiadas podem também ser um excelente recurso, transportando a mente para um cenário tranquilo e promovendo uma sensação de segurança e de paz.
Criar uma rotina diária para estas práticas é essencial para obter benefícios consistentes, pois quanto mais a mente se habitua a um estado de calma, mais fácil se torna lidarmos com os desafios do nosso dia a dia.
Por último, e não menos importante: fazer terapia. A terapia desempenha um papel fundamental na recuperação da ansiedade crónica e no tratamento das consequências de algo menos positivo que foi vivido. Desta forma, é-nos oferecido um espaço seguro para compreender as respostas do nosso corpo, aprender estratégias de gestão emocional e, gradualmente, restaurar o equilíbrio mental e emocional.