A maldição do Ego
“Tens um ego do tamanho do Mundo." Certamente já ouvimos estas palavras. Ou porque nos foram dirigidas ou porque foram disparadas para alguém que carrega um excesso sobre o “eu", utilizando o ego (esse ininteligível conceito) como um acessório.
O ego é a parte do ser humano que alimenta pensamentos e emoções de interesse próprio, com base nos estímulos dos sentidos que formam as nossas opiniões particulares, levando-nos a agir a favor daquilo que nos agrada e contra o que nos desagrada.
Existe uma diferença crucial entre ter-se uma confiança interior aliada a uma poderosa determinação e um forte apego à crença na existência de uma entidade única como essência do nosso ser. Por exemplo, do ponto de vista budista, pressupormos a existência de um ego é uma distorção da realidade que, por conseguinte alimenta uma ilusão e desencadeia todo o tipo de estados mentais mais ou menos aflitivos. Como podemos conjugar isto com o pressuposto de que existe uma necessidade quase vital de existir um ego forte? Tudo depende do que chamamos de ego forte, claro. Ou de ego “inflado".
O conceito de ego esconde-se atrás do “Eu" em pensamentos declarativos e afirmações a respeito da nossa própria identidade. Quando produzimos esse tipo de pensamentos e concordamos com a convicção de que estas ideias nos definem, então aí sim estamos a construir ou a alimentar um ego numa fase claramente embrionária. É natural construirmos esta linha de pensamento quando somos crianças, incitados por situações passadas que ocorreram no recreio da escola ou quando um superior nos repreendeu por falarmos num volume acima do aceitável dentro da sala de aula. E até mesmo dentro de casa, por parte da nossa família.
Na primeira pessoa…
Por experiência própria, nunca gostei que me levantassem a voz, por muito errada que estivesse. Nunca gostei de barulhos e ainda hoje não consigo ouvir determinados sons. Sempre caminhei ao longo do espectro da Fonofobia sem nunca lhe conceder os devidos créditos. Assim sendo, quando se dá início a uma discussão eu procuro que a mesma não tome proporções desnecessárias, sobretudo para não me magoar a mim mesma. Porque construí uma imagem de uma pessoa frágil, dona de uma enorme sensibilidade (que acabei por canalizar para a música, literatura e imagem), capaz de se estilhaçar em mil cacos à mínima investida. Considerando que aprendemos e desenvolvemos o conceito do “Eu" quando ainda somos crianças torna-se inevitável que a nossa própria imagem não se coadune com a realidade enquanto adultos. E, felizmente, para mim, consegui distanciar-me dessa criação ao ponto de não me identificar na totalidade com ela. No que diz respeito a esta mesma imagem que criamos de nós mesmos, como eu criei a minha, os problemas surgem, sim, quando esta é negativa, desfasada da realidade ou positiva em demasia. E em todas as culturas a construção de uma imagem pessoal é um elemento fundamental do processo de socialização.
Nós somos um continuum de experiências associadas ao corpo e ao mundo exterior, um continuum em perpétua transformação. E acreditamos que no centro desse fluxo habita uma entidade singular e distinta, o nosso verdadeiro “ego", algo como um barco que viaja ao longo do rio da nossa experiência. Portanto, é praticamente impossível deixar de imaginar esse ser como uma entidade distinta e singular e, embora o nosso corpo e a nossa mente sofram transformações contínuas, teimamos em lhe atribuir características de permanência, singularidade e autonomia. Presumir que o ego é uma entidade autónoma transforma-se numa completa distorção da realidade, porque vivemos numa sociedade de relações de interdependência. Necessitamos uns dos outros mantendo a nossa independência. E ser independente não representa, de todo, um problema quando falamos em termos a capacidade de assumir e ter recursos internos suficientes para enfrentar os desafios que a vida nos coloca no caminho. No entanto, essa independência não significa imaginar um ego que seria uma entidade independente. É precisamente o oposto: é compreendendo a interdependência fundamental entre nós, o Outro e o mundo que constituímos a base lógica indispensável à expansão do amor altruísta e da compaixão.
Ego vs. Egocentrismo
É essencial sublinhar que quando falamos de ego não falamos necessariamente de egocentrismo porque são conceitos diferentes. Egocentrismo é nada mais nada menos do que uma exacerbação do ego que, frequentemente, associamos ao egoísmo, atitude altamente incompatível com o altruísmo e compaixão. Geralmente este tipo de ego forte é chamado, na gíria, de “ego inflado". Ou "ego enorme". Um suposto ego forte é, na verdade, ao contrário do que possa parecer, muito vulnerável, uma vez que no seio desse universo centrado estritamente em si, tudo se transforma em ameaça ou objecto de desejo insaciável. Quanto mais forte for o ego, mais alvo será para perturbações externas e internas. Conheço, inclusivamente, quem se preocupe até com o que já aconteceu, prendendo-se no passado ou projectando-se no futuro, como um pêndulo em movimento, do passado para o futuro sem nunca estacionar no ponto zero, no nosso presente.
Dizem-nos que a preocupação é uma das piores formas de actividade mental (e é, sejamos realistas!), porque é inútil e porque não compreende a nossa conexão com algo maior do que nós tendo em consideração a imensidão do que nos rodeia. E o elogio é uma preocupação tão importante como a crítica, porque ambos fortalecem ainda mais o ego e intensificam o temor de deixar cair a boa reputação pelo caminho. Aquela reputação que tentamos a todo o custo manter e proteger. A preocupação diária com a imagem que vendemos de nós próprios provém, sim, do nosso ego. A título de exemplo, a minha família sempre me fez saber, desde criança, que coloco demasiada pressão nos projectos que empreendo por ser demasiado perfeccionista e avessa a arestas mal limadas, a buracos discursivos, a palavras pouco claras. Nas minhas gavetas mentais os itens de todas as esferas da minha vida estão organizados por ordem alfabética, por cores, texturas e sons. Em duas línguas, convenhamos. Não permito que novos desafios vejam a luz do dia até estarem exactamente como eu os idealizei. Porquê? Porque quero passar a imagem da pessoa organizada, focada e convicta nos seus ideais, que sou hoje.
O ego que condena a cobardia
O ego precisa de alimento porque é passageiro e porque precisa de duas coisas: ser contrariado e criticado. Temos um ego que condena continuamente a cobardia. Devido a essa condenação e à interpretação que lhe está associada é que surge a dor. A dor psicológica só termina quando a aceitamos na sua totalidade. A dor psicológica não existe só por causa da presença de algo que consideramos, de certa forma, doloroso. A dor é produzida pela nossa interpretação da realidade. E a cobardia não é dolorosa, a ideia que produzimos da cobardia é que não está correcta, assim como interpretarmos a cobardia como algo que não devemos sentir. Devido a essa condenação e à interpretação que lhe está associada é que surge a dor. A dor que, na maior parte dos casos, se projecta naquilo que não vamos empreender, que não vamos criar ou produzir, por nos deixarmos dominar pelo medo.
Numa era em que todos temos uma opinião relativamente a qualquer assunto, essa impossibilidade de dar a conhecer ao Mundo uma ideia na qual trabalhámos durante muito tempo, na qual dispensámos uma grande parte do nosso esforço, provém essencialmente desse medo de rejeição por parte de quem nos vai julgar. Porque o ser-humano continua de passo firme na “caminhada da vida”, porém sempre frágil quando confrontado com a rejeição, seja ela a nível pessoal ou profissional. É possível que a dor da rejeição esteja mais ligada ao sentimento de menos valia do que com a perda do objecto de desejo em si. O facto de sermos colocados de lado invoca não só a ferida do vazio como também um espelho para o qual tanto evitamos olhar: nós mesmos. Há também aqueles que, com tanta aversão à rejeição, agem inconscientemente de maneira “preventiva”: rejeitam antes de serem rejeitados, traem antes de serem traídos, atacam antes de serem atacados. Uma forma equivocada de se prevenirem contra a dor.
Passámos anos a construir diversas imagens do nosso ego, vivendo dentro delas e fortalecendo-as. O processo de extracção do nosso "ser" desta matriz de falsas crenças e valores levará mais do que vários dias. Várias semanas. Pode levar anos. Vai levar tempo. E então? Nada existe de permanente, excepto a mutação. A cada instante teremos uma nova oportunidade de transcender o ego, diminuindo esta carga que trazemos sobre os ombros e minimizar a dor que criamos. Quando este apego ao ego se desfaz, o alvo desaparece e podemos finalmente conhecer a paz.
Ou alguma parte dela.