Renascer
Existem situações que nos deixam profundamente marcados de forma inarrável, seja por serem demasiado complexas, delicadas ou simplesmente por não haver espaço onde essas dores possam ser compreendidas sem julgamento.
Para algumas pessoas, superar um trauma emocional pode ser uma experiência profundamente solitária, especialmente quando envolve circunstâncias difíceis de partilhar. Quando somos colocados à margem de determinados momentos que deveriam reflectir um fim simbólico, a perda, seja ela de que tipo for, adquire uma camada adicional de solidão que em nada ajuda no nosso processo de cura individual. Ficamos sempre com a sensação de que algo nos foi roubado, um direito negado sem motivo, e isso prolonga o peso da ausência, estendendo-se de forma quase interminável. A chamada “Noite Escura da Alma” cola-se harmoniosamente à pele, tornando-se confortável.
Ser pilar em solo instável
Após passar por processos desta natureza, tenho esta tendência de me refugiar no cuidado para com os outros. É frequente verem-me ao virar da esquina, de sorriso aberto no rosto, procurando através de gargalhadas e afirmações positivas mantê-los firmes e serenos, durante um longo período de tempo, enquanto me vou afastando do centro das minhas próprias emoções. Este mecanismo de defesa (que sempre esteve presente na minha vida para não chocar de frente com a dor) embora compreensível, leva-nos muitas vezes à negligência do nosso próprio coração, que fica tapado e silenciado para evitar causar atrito ou ainda mais perturbações. Por mais nobre que possa parecer colocar os outros em primeiro lugar, esta escolha pode afastar-nos ainda mais da nossa possibilidade de cura.
O regresso à essência
Ainda assim, existem sempre formas de encontrar a luz na escuridão, mesmo quando parece que tudo à nossa volta, subitamente, se fragmentou. Da noite para o dia. Do dia para a noite.
A espiritualidade, muitas vezes latente, pode emergir com uma nova intensidade, oferecendo um sentido maior para o caos que nos envolve. Quando atravessamos um momento de perda extrema, sobretudo se for envolto em contornos trágicos e repentinos, a vida como a conhecíamos deixa de fazer qualquer sentido. Dói tanto. Aquilo que antes nos sustentava emocionalmente pode tornar-se vazio ou irrelevante, abrindo um buraco gigante no centro do peito, muito difícil de preencher. É justamente neste vazio que o processo de reconexão com a nossa essência, com aquilo que verdadeiramente somos, pode surgir, não como uma explicação simples para o nosso sofrimento mas como uma forma de nos conectar a algo maior, algo que transcende a realidade imediata.
Ressignificar: transformar a dor em amor
Este novo contacto com a nossa essência pode manifestar-se de várias formas: na contemplação silenciosa da natureza, na prática consistente de meditação, na procura por literatura que em tempos não tencionámos explorar ou, simplesmente, num profundo sentimento de entrega ao que não podemos controlar, ao que estava designado e acordado antes de encarnarmos neste plano.
Relativamente ao processo de ressignificação, este permite-nos desenvolver uma nova percepção sobre a vida e a morte, sobre as relações interpessoais e os significados que atribuímos às nossas vivências e experiências. Trata-se de aceitar que, mesmo em pleno dilúvio, existe uma força criativa, um fio de pesca invisível que nos pode conduzir de volta à serenidade e ao estado de contemplação na sua forma mais pura.
A procura por um “sentido” através de uma viagem pela espiritualidade não é linear nem imediata. Trata-se de um processo íntimo, extremamente pessoal e que requer entrega e (muita) paciência, mas pode trazer uma paz que não depende das circunstâncias externas, porque encontrar essa luz interior não apaga a dor (nem nunca o deverá fazer), mas molda a maneira como nos relacionamos com ela. Quando, em tempos, percebi que o sofrimento faz parte de uma espécie de teia mais vasta de experiências humanas, senti que não estava totalmente sozinha. Nunca estive.
Da mesma forma, a criação artística tornou-se uma via preciosa de redenção. Canalizar a própria dor para manifestações artísticas como a escrita de poesia, composição de música, pintura ou outros trabalhos criativos, permitiu-me dar forma ao que, de outra maneira, acabaria por ficar aprisionado e apodrecido dentro de mim. Vejo a arte como o santuário sagrado onde a minha dor encontrou algum significado, onde as emoções passaram a ser expressas com liberdade e autenticidade. E, sobretudo, com amor. Muito, muito amor.
Transformar sofrimento em criação não é negar perdas, mas sim dar-lhe um lugar no mundo, honrar da forma mais íntima e bonita aquilo que vivemos. Deixar o coração falar.
E transformar a mais intensa dor em arte e amor é, sem dúvida, uma das formas mais maravilhosas de homenagear o que nos foi retirado, abruptamente, pelo Universo. Não se trata de esquecer, mas sim de dignificar as memórias, permitindo que algo luminoso nasça do que, em tempos, foi devastador. Esse processo não nos isenta do sofrimento, mas devolve-nos um sentido de plenitude, onde os dias por vir podem, apesar de tudo, florescer novamente.
E a Primavera está quase aí.