É preciso partir

Rodei os calcanhares e o mundo cindiu-se num impulso oblíquo, uma dobra do tempo ou do espaço, onde o rosto que me fitava era o meu próprio esboço desenhado na pele de um outro.

O teu.

A voz, a mesma forma delicada de dobrar as palavras antes de as lançar pelo vácuo, e o sorrir mudo que apenas os nossos olhos sabem articular.

Somos iguais.

Feitos da mesma poeira extinta, do mesmo lodo primordial onde os astros afundaram as mãos. O que te molda é o que me veste a pele e cada célula tua conhece-me por cada sílaba do meu nome, como se tivesse habitado o mesmo ventre rejeitado de uma vida anterior ao tempo.

No teu rosto é onde distingo o traço inacabado daquilo que gosto de esconder, a maré escura e selvagem onde afundo delicadamente a curiosidade dos meus olhos à medida que descubro, na refração do teu olhar de mogno, a luminescência estremecida que, sem saber, sempre me pertenceu por toda a eternidade.

Disse-te que, um dia, se me apaixonasse, seria por ti. Mas não o disse inteiro. Não o disse até ao osso. Deixei que o silêncio tomasse a forma daquilo que não se pode nomear sem antes o desconstruir. E tu, sem suspeitares, foste ocupando os intervalos vazios desse trago de vinho nocturno sem enunciado, bebendo da sede que não conseguiste saciar a tempo.

Porque o tempo sempre nos mata. Ao seu próprio ritmo.

Procurámos enterrar este amor na terra mais funda, mas o reverso da fuga sempre soube como nos encontrar. Fechámos todas as portas, parámos todos os relógios, apagámos rastos deixados pelos pés. Esquecemos os nomes, formas, o redor, fazendo da evasão rotineira um ofício. O medo de nos querermos cegamente como uma casa isolada sem sol, sem janelas.

É preciso partir.

Partir por medo de nos amarmos, entre o sopro e a fenda por onde se escoa a verdade que nos separa tragicamente antes da hora, como se a despedida não fosse já em nós o presságio de um futuro agasalhado, a ruir à distância.

Há nesta derrocada um lastro de lucidez que nos permite perscrutar, ainda que a contragosto, o avesso da ruína.

Neste exílio interior, onde a palavra se esfuma devagar, habito eu agradavelmente a funcionalidade mínima da sobrevivência. O caos anterior, essa laceração sísmica que me extenua até ao rasgão do inominável, cede agora a uma forma anémica de subsistência.

Preciso de partir.

Partir e pairar sobre o rio onde a corrente me faz e refaz incessantemente, onde a luz cintila na superfície e me devolve, de novo, inteira. Sei que a travessia do estuário é inevitável e que a combustão interna há de decantar-se numa brisa de brilho. Mas neste momento há que suportar a combustão lenta da queda ao longe, esse arrastamento inexorável pela extensão do abismo, para que, um dia, em breve, o nosso olhar reencontre a métrica etérea do céu que nos vestia todas as horas dos dias lentos beijados pelo nosso mar.

O ferro tornou-se fumo, o medo desfez-se em vento. Encontrámo-nos na camada entre as cinzas e o céu, onde já não havia trevas, apenas o espectro diáfano velado por uma névoa de serenidade apócrifa.

Como a única palavra possível que nos cobre a boca e silencia a voz, a paixão retoma a queima lenta da pele ao sol, esfregando-a contra a brasa da gaiola de barras em chamas. Conhecemos tão bem a dor dos ciclos da paixão…

Conseguem ser cruéis.

Eles não percebem os pássaros. E não percebem porque é que ainda te escrevo poemas tecidos com as fibras das estrelas. Porque é que te pinto em quadros onde o teu coração bom dança em gestos de luz. Porque é que te canto melodias que se desmancham em palavras soltas, sobre o caderno esquecido no miradouro, que agora se despede da fadiga do dia.

Porquê? Porquê…

Porque este nosso amor não é coisa que se despeça com a chegada clandestina da noite.

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O Apego dos Deuses