O Apego dos Deuses
Olhávamos a ondulação como quem
descobre a mesma água de sempre.
Sabíamos-lhe o curso, a transparência,
o silêncio que nos escorria pelo paredão
pérfido, já desgastado pelas pegadas
breves da espuma que reclamava a terra.
Fixávamo-nos nela,
Passando as tardes assim
nesta estranha alegria de ver partir
o que nunca fica,
de medir o tempo pelo que se perde,
pela secura, pelo excesso.
Enquanto o mundo brilhava nas máscaras dos outros,
tão monótono, tão insípido, a vida sempre
tornava a correr sem regressar,
diante do nosso olhar, que procurava
sempre a mesma água.
Hoje não somos as palavras que escrevemos,
nem as trevas que nos vestiam a rotina
que restava nas dobras do tempo.
Já te perdi em todas as vidas,
já contei os passos do sol
até ele se apagar nos mastros dos veleiros.
Nesta vi-te partir para lá da maresia,
para onde os deuses te levaram.
Mas o apego dos deuses não é concebível.
E dizer que te amo ainda parece insuficiente,
demasiado pobre para definir
a magnitude da quimera que me assombra.
Em sílabas gastas e rostos sem rasto,
Em trapos retidos na pele.
Converte-se o amor em murmúrio
que nos desarruma os sonhos,
que confere sentido à vida
ao mesmo tempo que o retira.
E por isso faço-te poema,
faço-te prosa,
faço-te palavra desenhada nos céus,
de peito aberto ao frio do mundo,
de palmas geladas e pés inundados no lodo.
Mas faço-te.
Na forma mais pura
de tudo o que sou.