Poema a duas mãos
Escrevo como se fosse apenas
um corpo metralhado pelo tempo,
como se a língua que me ferve entre os dentes
virasse uma ferida aberta
de onde desaguam todas as formas possíveis
de dizer que te amo.
O papel multiplica-se enquanto
as palavras se reproduzem na minha pele
Escreves porque não sabes existir de outra maneira,
porque o mundo não te basta,
porque nenhuma vida cabe naquilo que somos
quando as nossas mãos se encontram
calmamente nas vértebras da noite.
O ontem não nos trouxe distância,
só a matéria incandescente onde vivemos
a nossa própria febre, a combustão,
o nome secreto de todas as coisas
que nunca iremos contar a ninguém.
Pintas-me com pinceladas
os contornos suaves em tons pastel
nos quais ousei cantar para ti
entre quadras escritas à pressa,
com os membros inclinados
sobre o papel beijado pelos deuses.
Traças uma linha, eu desfio-a.
Derramas a palavra e eu bebo-a até
que o sangue se confunda com a tinta,
até que o tempo se desfaça em filamentos de luz.
Porque o tempo é uma invenção
dos que nunca souberam esperar,
Que se cola à pele como bicho faminto.
E nós esperamos.
Esperamos como quem pressente
o alarme antes da explosão.
Escrevemos porque o amor não nos cabe nos dias,
nem nas horas, nem nos gestos pequenos do trivial,
esta coisa absurda e secreta,
esta certeza sem forma precisa, esta eternidade
que nos atravessa mesmo quando o dia nos separa
dos relógios que seguem a marcha inútil
de tudo o que morre por entre
as catedrais dos nossos jardins.
Mas nós ficamos.
Ficaremos sempre, meu amor.