No palco de uma qualquer rua
Dei a morada do coração a um poeta que, sentado sobre uma mera toalha de papel rasgada, desenha repetidamente triângulos coloridos, com Lisboa a despertar por entre as brumas feitas de um índigo que abraça o rio, numa espécie de cumplicidade antiga que nem o tempo ousou corromper.
Olha-me com o desdém que só a palavra infame conhece, como quem vê no meu silêncio a metáfora exilada ainda por nascer, oculta algures entre a aragem húmida do Tejo e a ferrugem tão característica da ponte. A Graça, que não tropeça mais nos saltos altos dos seus dias cansados, caminha agora com a elegância inabalável de quem aprendeu a dançar sob qualquer aviso meteorológico.
Chove cá dentro também.
Por entre as fachadas molhadas que testemunharam paixões sigilosas, confessam as janelas, de cortinas entreabertas, que o sol se recolheu, desiludido, para lá das colinas, deixando apenas um rasto de culpa impregnado no ar. Enquanto mantenho aos pés a saudade, que passou a viver onde as minhas sombras e nuvens gostam de se aninhar como espécies demasiado raras, um cacilheiro corta aos poucos a pele tranquila do rio até à outra margem, levando a brisa magnética a dissolver-se na espuma.
Vou permanecendo estática, com os cantos dos lábios curvados em meia lua, selvagem como o frenesim do vento brando antes do vendaval.
Oiço na voz do poeta que os meus olhos escondem lagos insondáveis, alimentados por lágrimas adiadas, talvez perdidas algures, nos confins de um fado tocado ao longe numa batalha travada nos becos soturnos da alma, onde me penduram pelos pés nas antenas que riscam os céus.
Tenho uma mala pesada da nostalgia acoplada ao corpo. Do interior irrompem fluídos eléctricos como os raios domesticados que se espalham em ondas fluentes pelo espaço ao redor. A luz, sempre feroz e sem margem para concessões, engole o lume pálido dos candeeiros, que vacilam, rendidos, como meros figurantes esquecidos no palco de uma qualquer rua.
Sombras sem argumento.
Resta-me somente o brilho dos azulejos, reflexos que se desfazem no que sobra do miradouro, um nevoeiro que se dissolve no olhar ainda perdido na fanfarra do desespero, na frágil agitação de um mundo que, por vezes, me parece estar sempre a escapar entre os dedos.
O poeta tinha razão.