No colchão gasto há uma cova formada pelo corpo

No colchão gasto há uma cova formada pelo corpo.

De mãos acolhidas pelo sono, o molde é minuciosamente concebido pelo sopro da ausência. Já o vulto dourado da tarde dança, agora, ao longo da cal já desgastada das paredes, diluindo-se nas primeiras gotas de água de Abril, como corpos a flutuar em águas excessivamente salobras. O compasso de espera por quem escapou por entre as sobras da embarcação resume-se, agora, à soma dos minutos multiplicados em promessas de manhãs sóbrias que, ora se enchem, ora se esgotam.

Temos um rio de fogo ao longo da nossa casa negra de silêncios que a aragem, de olhos sistematicamente desfocados e rosto rígido como o aço das máquinas, não é capaz de perfurar. A prematuridade do incêndio que se estende pelo desalinho do pomar, de vegetação crescida e crua, anuncia a morte do sol, numa espécie de grito asfixiado, arrastando consigo mutações tórridas de contornos que a memória rouca, paulatinamente, foi desamarrando do cais.

No colchão gasto há uma cova formada pelo corpo.

Como uma ilha arraigada que o acaso das marés íngremes que jurámos, em tempos, ter escalado num entrelaçar de dedos, trouxera para junto da escarpa de poucos limos, onde os dias morrem por cada noite e as noites se silenciam por cada dia.

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