Refúgio Crepuscular
Sul.
Não há, praticamente, nenhum som. Apenas a agitação redundante de arbustos em temperaturas perfumadas e o rodopio de estratos de sedimentos finos. O sol está alto e há luz suficiente. A ausência de luz restringe-nos o coração.
Enquanto procurei olhar-te como sabia, ainda dormente como o verbo dúbio do amanhã, resolveste cantar-me a melodia de quando ainda éramos pequenos pássaros sonhando ser gente e nos sentávamos nos juncos, à beira rio, para soltarmos pequenos pedaços de gravilha sobre o manto encrostado e macilento que nos cercava os calcanhares de missangas, sempre que desapertávamos as sandálias desbotadas pela brisa de Oeste.
Relembraste-me, então, que o impacto dos minúsculos retalhos de calcário na ribeira, parcialmente seca e polvilhada de pequenos ramos desmaiados de silvas e pampas, nos mostrava a multiplicação das estrelas ao segundo. Como pequenas explosões de luz gravitando em torno daquilo a que sempre chamámos de refúgio crepuscular. A nossa futura casa nas rochas, a se efectivar no barrocal, assente na passagem veloz dos dias antigos por entre texturas calcárias e xistosas, sulcando trilhos e lembranças graníticas.
Era a minha vez de te segurar na mão e te forçar a encharcar as raízes de uma esperança sufocada numa água parada onde ela própria fez morada. À medida que o mar martelava a costa, cada rebentamento dizimado pela onda que se seguia, nunca por acumulação, nunca uma onda tentando construir-se a si própria noutra, carreguei-te os dedos como o rio carrega um barco.
E perguntei-te, baixinho, se parte da essência do tempo é a mudança, como pode tudo tornar-se nada em tão pouco tempo? As águas não mudam à medida que a terra muda; não mentem. Perguntemos ao mar o que lhe será possível prometer-nos e ele dirá que a montanha sempre se eleva perante o mais nobre dos desalentos, como um farol, para lembrar a noite que a terra íntima e árida irá existir para sempre, mesmo flutuando amarrada a um pequeno casco de madeira cravejado de saudade.