O calor antes da queimadura
Quando os indicadores alcançam a barreira de ferro, recentemente pintada de verde, as nuvens descem lentamente do trapézio, como almas cegas em cortejo, colocando-se precisamente à altura dos meus olhos. Duas janelas abertas de um mundo pouco ou nada formatado.
Foi nesta espécie de intersecção entre o chegar e o partir em busca de qualquer lugar que me fornecesse rota que me encaminhei, como habitual, até à mulher que me aguardava na praça de táxis.
Vestia-se de poeta, por debaixo das inúmeras camadas de roupa sobrepostas sob guarida de um sobretudo cor de mogno, gasto, esfrangalhado pela lenta circulação de poeiras veranis ao abrigo do maior tecto dos seus mundos. Trazia vincos de almofada no rosto, vestígios de trilhos na pele e um oceano nos olhos, o ponto da solidão infinita, o ponto revolto que separa a morte do caos. Todas as noites se embriagava, não com rum velho da madeira nem absinto, mas com as suas próprias lágrimas. Caudais de culpa. Ou outra coisa qualquer.
Conversávamos mais nos dias compridos, em que o sol se demorava no cimo das chaminés, uma luminosidade transitória na alçada de um tráfego aéreo intenso. Naquela noite, em particular, enquanto a lua se arrumava no meio de outras tragédias, perguntei-lhe se o seu choro persistente era amargo e desagradável. Negou, referindo que este era tolerável e extraordinariamente vulgar.
“As minhas lágrimas enganam. Foram cautelosamente temperadas por mim. Trago comigo o uivo nocturno dos espinhos e sinto, desde há muitos anos, a primavera pendurada pelos dedos. Não há nada de desagradável nas minhas lágrimas. Escoam-se nas vísceras mas são mundanas, servem de manto para embrulhar as trivialidades dos outros e bebem-se nestes recantos onde todos se vêm esconder às ultimas horas da madrugada. Apenas findo os dias aqui, sem ânsia de voltar, neste cruzamento, perante o desdém destes três freixos encobertos pela paragem do autocarro.”
Ocorreu-me que todos os seres humanos estão divididos entre aqueles que desejam avançar e aqueles que desejam voltar. Onde desejaria esta mulher voltar? A casa? Há quem se perca na sua própria casa e quem se expanda tanto que constrói, invariavelmente, a casa dentro de si. Correm-lhe, como habitual, fios translúcidos pelas maçãs do rosto, assentando em caminho livre, seguindo perdidos como embarcações sem bússola até ao centro do peito. Não passávamos de dois rochedos que se analisavam à pouca distância, banhados pela imposição de silêncios e de meias palavras.
Era urgente aspirar as flores que se soltavam dos seus dedos, destruindo-se lentamente por baixo dos pés, e armazena-las em local seguro que as separasse adequadamente do que seriam prantos, vícios e amenidades.
“O meu coração está totalmente tapado. Não pelo casaco ou pela malha caduca que foi passando de tronco em tronco. Está escondido pela pele, pelas costelas. Ninguém lhe conhece a exactidão dos batimentos certos por minuto. Ninguém se apercebe se pára por segundos, se desacelera, se entra em contramão numa engrenagem perfeitamente calculada ou se estaciona indevidamente, algures entre o desmembramento final e uma estagnação patética.”
Silêncio.
Num impulso voraz, perfeitamente alinhado com a sua respiração cafeinada, encara-me sem qualquer vestígio de inquietude. E perante este sentimento ininteligível que me esbate a visão numa rajada abafada, tão típica desta altura do ano, faz questão de me sossegar a alma. É breve mas lento o sorriso, um pacto preguiçoso à passagem vagarosa da madrugada, num movimento embrulhado em neblina lúgubre e poluída.
Avançamos até à extremidade do passeio e sucumbimos na cidade, mergulhando no asfalto ardente onde se torna possível sentir o calor antes da queimadura, revelando abertamente as tempestades mútuas que se vão propagando por dentro, principalmente quando dizem respeito ao lado esquerdo do peito.