Pontão
Nesta noite pura de azul, agora abandonada de sinfonias fatigantes, fito o tempo. Esse comboio que me desce pelos pulsos e me escorrega pelos polegares. O tempo vadio, em minúsculos retalhos, é o que me faz ou é por mim tricotado, nas horas cor de carmim, resignadas ao puro abandono em que se espraiam.
Lasso. Cativo. Cansado.
De mãos ancoradas algures no deserto das cidades.
Sussurro-lhe que tenho medo. Mas que o calor do temor deveria ser como as velas içadas sob o Universo cálido que nos repele do caos, da inércia, da subjugação amarga a saber ao valor da verdade. E peço-lhe, por entre versos e reversos, que nestes tempos de paixões escassas e auroras que não despontam, me falem sempre com a tónica certa de melancolia.
Que me levem a conhecer o crescimento desproporcional do betão onde se aloja a chuva embaciada que se desprende em palavras foscas. Que me levem ao lugar ermo onde a bravura das florestas renuncia o cinzento egoísta e pestilento. Onde não possa ser mais amarra imbricada lá longe, o berço das rosas que se fazem negras.
Não, não serei mais pétala míope arrancada à saudade e largada ao extenuado batimento da Terra.
Porquê? Porque atirei tudo ao abismo silente que em mim mora. E porque me cansei. Cansei-me das alvoradas sem marés, das viagens ocas, fechadas, devoradas lentamente por nevoeiros lamacentos.
Cansei-me brutalmente da realidade incauta, de promessas quiméricas e sempre volantes de que manhãs próximas seriam cautelosamente desenhadas pelo canto das gaivotas a sul. Cansei-me da perpétua contaminação das palavras, de sílabas impuras, diagonais e cadenciadas que se alojam no peito que se desfaz a cada suspiro da madrugada em lágrimas de sal, e não de mar.
A vista é mais suave do lado de lá do pontão, na virtuosidade da aldeia, onde não irei vislumbrar a dolência da Lua sem lugar de nostalgia. Paisagem sonora onde irei nascer sem saber de horas, construindo-me apenas no esquecimento de mim a cada fuga.
E é ao desígnio do vento, ao abrigo da luz vigilante nos beirais das janelas, no abraço da onda que eclode no momento exacto em que o sol se recolhe no horizonte, que grito a morte dos dias voláteis (quais conformismos felizes) e invoco o regresso vagaroso das brumas trovejantes, dos abraços suspensos no limbo e dos abalos discretos dos eruditos em cativeiro.
Em tempo de quietude, aclamo somente, numa extensão vazante, o recanto de água à margem do medo para onde me fogem os olhos.
E por onde me nascem as sombras.