Sempre quiseste vir à boleia dos pássaros
Foi em segredo que ontem me embebedei com o teu veneno.
Arrastaste-me para a tua fraude habitual e eu provei, rastejei, berrei. Mas não fugi. Aliás, nós nunca fugimos. Fomos dotados de engenho suficiente para simular. (A arte de nos confundirmos com o escuro). Apenas desaprendemos, enleados no perigo adjacente a ser-se multidão. A dimensão do erro a ser proporcional à intensidade do abraço de dois estranhos que se entrelaçam ao primeiro olhar.
O teu olhar.
Amanhecias com o voo das gaivotas sobre as chaminés, o aroma do orvalho em bambu, com o sabor das gargalhadas da maré tépida aos nossos pés.
Hoje desapareces pela tarde. E contigo a singularidade dos teus olhos, deixando tudo por dizer à vista da vida que se desenrola em dois tempos, apesar de aí a ter sentido sempre pela metade pardacenta, com as horas a se destruírem a si mesmas sobre a mesa de cabeceira.
Cravo os meus no chão onde a tua alma se entornou, suplicando aos deuses que este se transforme em mar, enquanto acompanho o começo da realidade onde nos findámos, de mãos geladas ancoradas na face já ausente do próprio corpo. As flores desmaiam devagar, ao redor, em jardins de palha acumulada, há muito inertes, na premência de um anonimato que chega tarde.
Tão tarde…
Um sufoco grita-me e ausentes ficam as palavras, aquelas habitualmente melífluas, que elevam o teu nome nas entrelinhas da correria diária por entre os teus sorrisos sempre carregados de sol. Por agora, limito-me a estilhaçar o coração em granizo.
Chega a madrugada sem luar e eu revejo-te com tamanha precisão. Recordo o amor, tantas vezes brotado dos teus lábios de anjo, para sempre cravado na raíz do meu peito egoísta que nunca soube ser-te refúgio.
Desculpa.
Porém, farei de ti poema, com o peso dos teus passos como ecos nesta minha demência irrigada pelo formato tão extraordinário dos teus olhos. Com a firmeza dos teus braços sobre os meus ombros encolhidos pelo peso da memória em séculos.
Prometi que tornaria a envolver as tuas mãos ternas outro dia, quando as lágrimas endurecerem e a pele cicatrizar pela passagem do tempo. Mas não haverá outro dia, a não ser outra noite, num qualquer sonho desamparado deste Universo rural e remoto para o qual, irremediavelmente, te trouxe comigo.
(Sempre quiseste vir à boleia dos pássaros)
Irei sonhar-te quando por fim adormecer. E esse sonho sempre será meu.
Só meu.
Porque foi em segredo que ontem me embebedei com o teu veneno.
(Não contes a ninguém.)